A SEXUALIDADE HUMANA E O GÉNERO NA PSICOLOGIA – Olga Oliveira

Introdução

A sexualidade é considerada um elemento essencial da natureza humana não só na sua vertente procriativa mas também na manifestação afetiva e para o estabelecimento de relações com outro(s) ser(es) humano(s). 

Por sua vez, o género tem sido um tema importante particularmente nos últimos trinta anos ligado sobretudo à questão dos direitos humanos. Nas diversas declarações e planos entretanto aprovados nas diversas Conferencias Mundiais das Nações Unidas, a evolução deste conceito e de outros a ele associados levanta questões que têm implicações aos mais diversos níveis, sejam eles internos a cada individuo, seja em termos societais, culturais e na sua organização, como por exemplo, nos aspetos jurídicos, e sobretudo na forma como pensamos e vivenciamos a sociedade na qual estamos inseridos. 

Este texto tem como principal objetivo sistematizar alguns conceitos e as suas interligações bem como promover um debate sobre a transdisciplinaridade destes conceitos com outras áreas científicas nomeadamente as áreas das neurociências e biológicas. 

Assim sendo, é um texto aberto e que não encerra nem pretende concluir sobre a temática em questão. 

Sexualidade humana 

Segundo diversos autores (Bee, 1977; Mussen, 1969) o desenvolvimento no ser humano é um processo contínuo que se inicia com o ato da conceção. Colocam-se então duas questões: o que é que acontece e como é que acontece no ser humano durante o seu crescimento. É defendido e aceite, de uma forma geral, que este processo decorre de diversos fatores e influências internas como a hereditariedade e a maturação, influências externas como os processos de aprendizagem e as alterações ambientais, bem como da interação de ambas. Este desenvolvimento está, geralmente e na maioria das situações, regulado e processa-se através de uma sequência invariável, que apesar de ser contínua, pode não ser gradual e suave. Conhecemos situações nas quais existiram interferências neste processo dos quais resultaram deficiências e disfunções permanentes. O que acontece com o desenvolvimento sexual não é diferente (Kaplan, 1983). A sexualidade humana experiencia diversas alterações durante o seu ciclo de vida, desde o nascimento até à morte, com intensidade variada podendo ser considerada ímpar nas diversas funções biológicas do ser humano e porque na sociedade que conhecemos, os ciclos de vida sexual masculina e feminina também diferem em diversos e significativos aspetos.

Como já pudemos verificar, é aceite nos nossos dias, que a sexualidade se manifesta desde o início da vida e se desenvolve simultaneamente com o desenvolvimento geral do indivíduo. Logo que se dá a conceção, o embrião diferenciase geneticamente dando origem a indivíduos XX e XY, com o desenvolvimento dos ovários nos indivíduos XX e dos testículos nos indivíduos XY), caracterizando assim o feminino e o masculino, não só do ponto de vista dos genitais internos e externos bem como os denominados carateres secundários dos indivíduos durante o seu desenvolvimento (Canella e Nowak, 1997). 

Mas quando é que se iniciam as manifestações sexuais? 

De acordo com alguns autores, estas começam logo antes do nascimento. De acordo com Masters & Johnson (1988) e Kaplan (1983) foram obtidas imagens intrauterinas nas quais se podiam identificar ereções penianas. Após o nascimento é comum existirem manifestações sexuais reflexas tanto em rapazes como raparigas. Ou seja, do ponto de vista fisiológico, os tecidos de ambos pénis e vagina estão formados para que, durante o primeiro ano de vida, possam ocorrer ereções do pénis e lubrificações vaginais, não só de forma espontânea como também em resposta à estimulação táctil (no banho, na troca de fraldas) existindo assim a capacidade de sentir o prazer (López e Fuertes, 1992).

Tendo consciência do papel que a biologia tem nesta fase (bem como noutras), não vou aqui explorar este aspeto por não ser do meu âmbito científico devendo sim ser visto o texto da Susana Sá. 

O que sabemos na psicologia é que estas primeiras manifestações sexuais são muito importantes nestes primeiros contactos do recém-nascido com o mundo que o rodeia. Estas primeiras experiências são, geralmente proporcionadas através da convivência com os pais (ou cuidadores de referência) que medeiam estas interações, sobretudo a mãe (relativamente a esta questão, há autores que discordam deste papel principal da mãe). Debates à parte, é consensual que a família é assim o elemento formador da criança (Cordeiro, 2022; Gherpelli, Buralli e Rosenburg, 1992). 

São os pais que desde o início, educam sexualmente os seus filhos, de uma forma informal, através dos valores culturais, crenças. Nesta fase inicial, dá-se uma intimidade entre pais e filhos, através dos beijos, carinhos e outras demonstrações de afetos, como por exemplo, na amamentação, vestir, dar banho, brincar, vocalizar, entre outros. Esta ligação física e emocional que se estabelece entre os pais e o seu bebé é essencial, segundo Masters e Johnson(1988) para que a crianças possam vir a desenvolver mais tarde relações de intimidade com outros e vivenciar de forma saudável a sua sexualidade

As reações dos pais a estas manifestações sexuais do seu bebé podem ser diversificadas e ativar alguns sinais de “alarme” nos mesmos. A excitabilidade neurológica já referida anteriormente é interpretada como sendo prazerosa. Nas situações em que os pais não reconhecem estas manifestações como “normais” tem na sua base uma perspetiva adulta. Como nos diz Martison (1981), entre outros autores, não se trata de um erotismo sócio-sexual, baseando-se em motivações muito diferentes das dos adultos: “Os estímulos externos que para o adulto tem um significado erótico não são objetos de atração sexual durante a infância, ou, pelo menos, não são de modo tão claro e consistente. Na infância, a atração por outras pessoas é antes uma atração afetiva, muito mais do que sexual. O desejo e a atração especificamente sexuais só ocorrem na infância de modo muito confuso. Os estímulos táteis sobre o próprio corpo são os que têm maior poder evocador de respostas fisiológicas sexuais” (López e Fuertes, 1992, p. 52).

Por outro lado, existem também situações nas quais os pais (mais uma vez o papel da mãe é enfatizado por alguns autores), seja por sentimentos de culpa ou crenças variadas, conflitos sexuais internos dos próprios, entre outros, não respondem a estes primeiros contactos e manifestações dos seus bebés por acharem que estão a fazer algo impróprio. Nesta questão, é também importante olhar para os modelos familiares e as culturas e valores vigentes. (Bruns, Grassi e França, 1995). O que sabemos também é que a criança depende desta para o seu processo de humanização e socialização.

Ligando novamente aos aspetos biológicos, com o desenvolvimento do sistema nervoso central, a criança vai à descoberta do seu próprio corpo e nomeadamente dos seus órgãos genitais (Vitiello e Conceição (1993) uma vez que estes estão ligados ao centro de prazer no cérebro (Kaplan, 1983). A partir do terceiro ou quarto mês de vida, essa estimulação é acompanhada de vocalizações e com um ano de idade a brincadeira quando está sem roupa ou a tomar banho. Bakwin (1974) refere mesmo que as crianças realizam autoestimulação várias vezes ao dia e que a interrupção destes momentos causam irritação e/ou enfado. Mais uma vez, a forma como os pais (ou adultos de referência) reagem é importante nos sinais que enviam à criança, sobretudo quando estas interferências ocorrem durante o período de desenvolvimento do conhecimento dos seus órgãos genitais, que coincide, geralmente com a retirada das fraldas (Canella e Nowak, 1997). Dando sinais de que este prazer não é aceite pelos adultos pode ser indicativo de sentimentos de vergonha que o próprio adulto sente aos seus órgãos genitais (Canella e Nowak, 1997; Vitello e Conceição, 1993). A fase seguinte do desenvolvimento da sexualidade infantil, do controlo dos esfíncteres, e ainda segundo estes mesmo autores, a demonstração de nojo e desagrado face às fezes e urina e a eventuais transgressões pode ter uma função repressora. Atualmente, e tendo em conta que este comportamento mais repressivo não é benéfico para a criança, a comunicação oral tem vindo a ser substituída e/ou complementada pela comunicação corporal, nomeadamente o reforço quando a criança controla e faz nos locais considerados adequados. 

E aqui entra outra questão muito importante, a compreensão de dois processos constitutivos da sexualidade humana e se manifestam desde o nascimento: a identidade e o papel sexual e de género.

E o Género 

O conceito de género tem uma origem anterior se pensarmos em termos académicos, mas do ponto de vista institucional é com a ONU e com a sua Carta, que se começa a falar de igualdade de direitos dos homens e das mulheres, logo no preâmbulo, precursor do conceito de género, num âmbito mais generalizado dos vários países que constituíram e assinaram a Carta das Nações Unidas. 

A sua definição não é neutra nem objetiva. 

Se por exemplo, atentarmos nas definições que fazem parte do glossário da CIG (Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género), estas têm na sua base as políticas públicas que atualmente estão em vigor, com particular enfâse para a Estratégia Nacional para a Igualdade e a Não Discriminação 2018 -2030, de onde decorre, entre outros, o Plano de ação para a Igualdade entre Mulheres e Homens (PAIMH). A definição de género aí feita diz claramente que género “Refere-se aos papeis e responsabilidades das mulheres e dos homens, os quais são construídos nas nossas famílias, sociedades e culturas. O conceito de género inclui também as expectativas sobre as características, aptidões e comportamentos expectáveis de mulheres e homens (feminidade e masculinidade). Os papeis e expectativas de género são adquiridas. Eles podem mudar ao longo dos tempos e variam dentro e entre culturas. Os sistemas de diferenciação social, tais como o estatuto político, classe, etnia, deficiência física ou mental, idade e outros, modificam os papeis de género”. 

Por outro lado, a definição que a Ordem dos Psicólogos tem nas suas linhas orientadoras diz: Género: habitualmente conhecido por sexo cultural ou social) é uma construção social decorrente das expectativas criadas em torno da pertença sexual. Assim, ser do sexo feminino ou ser do sexo masculino parece pressupor, do ponto de vista social, uma associação a um determinado conjunto de características, papéis e normas pré-determinadas. Por ser uma construção social, o género varia de cultura para cultura, ainda que preservando na sua base um regime restritivo e prescritivo de possibilidades de se ser mulher ou homem. Quando os indivíduos ou grupos não se comportam em conformidade com as normas de género culturalmente estabelecidas podem enfrentar situações de estigma, discriminação e exclusão social. 

Só nestas duas definições verificamos que a primeira se baseia numa construção binária homem-mulher, a segunda refere que esta definição binária pode preservar na sua base “um regime restritivo… de possibilidades de se ser homem ou mulher”. 

Como podemos observar, o conceito de género tem inúmeras definições consoante o campo disciplinar no qual é aplicado e evoluiu enquanto conceito sobretudo a partir do século XX, através das contribuições das várias áreas científicas. 

No campo das ciências sociais, este conceito tem sido fundamental e tem estado no centro dos diversos debates que decorreram ao longo das últimas décadas. Para este debate, e para além da perspetiva histórica, tem contribuído áreas tão diversificadas como o direito, a psicologia, a sociologia, a antropologia, entre outras, na procura da desconstrução de estereótipos, na compreensão de comportamentos, perceções e atitudes e na determinação de novas identidades (Abrantes, 2011; Cole, 2003; Beasley, 2005; Beauvoir, 2009; Casaca, 2016; Evans, 1995; Mann,2012; Pasinato, 2019; Silva, 2016; Silva, Lima, Sobral, Araújo & RIbeiro,2016). 

Tendo em conta esta abrangência de áreas, estes desenvolvimentos têm também encontrado alguns obstáculos por parte de alguns grupos e instituições (Acker, 1990; Butler, 1990). 

Mas quando e com quem terá sido iniciada esta questão? Green (2010) refere que terá sido com John Money (1952) e Robert Stoller (1968) que terá surgido a diferenciação entre o conceito de género e sexo, através dos seus estudos com pessoas intersexo: “o comportamento sexual e a orientação sexual do sexo macho ou do sexo fêmea não tem um fundamento inato” (Dorlin, 2009, p.31). 

Em 1972, Ann Oakley escreve aquela que foi considerada a primeira obra científica a utilizar o conceito de género como uma construção sociocultural, ou seja, para além do constructo biológico e binário: “Sex, Gender and Society”. Mas o conceito de género não ficou por aqui tendo sido estudado, desde então, sob vária perspetivas, por exemplo, das teorias essencialistas, das teorias construtivistas sociais (Almeida, 2004) e das teorias pós-estruturalistas, estas últimas largamente difundidas por Judith Butler (1990). 

As teorias aqui evidenciadas foram depois descritas tendo em conta as três vagas do feminismo e com o surgimento de novos comportamentos, conceitos e nomenclaturas que temos até à atualidade. 

No entanto, há que referir que esta divisão em três vagas não é consensual (Connel & Pearse, 2015; Richardson, 2008). Se por um lado ajuda na identificação de referências e marcos/datas importantes, por outro lado, as principais críticas são precisamente devidas à dificuldade que existe em identificar onde começam e onde acabam as diversas vagas uma vez que se justapõem temporalmente. 

Em 1949, Simone de Beauvoir, na sua obra O segundo sexo, fez uma análise sobre a mulher e procurou afastar qualquer determinação “natural” relativa à condição feminina ao afirmar que: “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, económico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino”. Embora Beauvoir seja uma referência basilar − tendo lançado a pedra fundamental na construção das teorias de género, inicialmente voltadas para a condição da mulher −, não tem na sua obra a enunciação de género como um conceito. 

Atualmente fala-se numa quarta vaga, mas ainda não existem reflexões ou contributos teóricos sistematizados que permitam fazer uma análise mais profunda (Torres, 2020).

 

1. Primeira vaga 

É habitualmente definida como tendo início nos séculos XVIII e XIX até anos 70 do séc. XX. No início caracteriza-se sobretudo pela luta pela igualdade de direitos, pelas mudanças socioeconómicas e pela industrialização, nomeadamente pela luta contra a exploração do trabalho das melhores e de crianças, baixos salários e desemprego. Já no século XIX até ao início do século XX dá-se a luta das sufragistas e do direito ao voto. Foi sobretudo realizada pelas classes médias e operárias, onde se incluíram alguns homens. Alguns exemplos, Rosa Luxemburgo, Clara Zetkin. Outra das características desta vaga são os trabalhos escritos e os debates existentes. 

Nesta altura, sexo e género são sobretudo biológicos, distinguindo-se física e psicologicamente o masculino do feminino, o homem da mulher. Sexo e género são consideradas categorias distintas, mas com o género ligado ao sexo numa perspetiva unicamente binária. Os atributos de mulheres e homens são considerados inatos e definidos pela biologia, os homens são “racionais”, “objetivos”, “agressivos” enquanto as mulheres “sentimentais”, “emotivas”, “tímidas”. Temos assim uma abordagem essencialista, sustentada em abordagens mais conservadoras da sexologia, biologia, psiquiatria, psicologia clínica e inclusive do direito, entre outros. 

Com a I Guerra Mundial (1914-18) e a II Guerra Mundial (1939.1945), as mulheres começam a habitar os espaços deixados livres pelos homens que iam combater na(s) guerra (s), nomeadamente espaços laborais, sociais, culturais e até científicos. A presença das mulheres nestes espaços veio contribuir para o debate sobre o sexo e o género e para a mudança de mentalidades. 

Em 1949, Simone de Beauvoir, na sua obra O segundo sexo, fez uma análise sobre a mulher e procurou afastar qualquer determinação “natural” relativa à condição feminina ao afirmar que: “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, económico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino” (Beauvoir, 1949). Embora Beauvoir seja uma referência basilar − tendo lançado a pedra fundamental na construção das teorias de género, inicialmente voltadas para a condição da mulher −, não tem na sua obra a enunciação de género como um conceito. 

2. Segunda vaga 

Nos anos 1960-1990 dão-se as teorias construcionistas sociais de género pelo empoderamento da mulher na sociedade. Género é social e sexo é biológico. A teoria essencialista sobre género − e respetivo determinismo biológico − é criticada pelos construcionistas sociais, que salientam os aspetos relacionais como dimensão fulcral de género

O conceito de género é visto como uma construção social, e são desenvolvidas diversas teorias a partir das críticas relativas à naturalização das desigualdades entre homens e mulheres. Desenvolveram-se assim reflexões filosóficas e jurídicas, como também pesquisas em diversas áreas ciências sociais tais como história, sociologia, antropologia, psicologia e ciência política. O conceito de género desenvolvido pelas feministas dá à socialização uma importância essencial como mecanismo de criação e manutenção das desigualdades entre as pessoas. 

Em 1975, a antropóloga Gayle Rubin desenvolve teoricamente, no campo das ciências sociais, a noção da dicotomia entre sexo como elemento biológico, e género como elemento originário da construção social. Para esta autora, o sistema sexo/género é um conjunto de arranjos pelos quais uma sociedade transforma a sexualidade biológica em produtos da atividade humana, e na qual estas necessidades sexuais transformadas são satisfeitas. Na década de 1980, a categoria género, ainda focada na condição da mulher, já integra definitivamente as pesquisas destas diferentes disciplinas. 

Em síntese, neste período, o conceito de género refere-se sobretudo ao aspeto sociocultural do ser mulher, alcançado como algo construído e não exclusivamente biológico. Desta forma, o conceito foi muito importante na luta das mulheres e na conquista de direitos uma vez que deixou de considerar a “submissão” social como um destino, mas antes como algo construído socialmente. 

3. Terceira vaga 

A partir dos anos 90 do século XX, começam a surgir críticas relativamente ao género e sexo como discursos normativos que apoiam a binariedade de género, uma vez que consideram que este representa um mecanismo de hierarquização e de controlo social. Considera-se assim como um momento de rutura do sistema binário de género: homem/mulher; masculino/feminino. 

Emergem novas identidades de género, a ideia de desconstrução da identidade de género, dando lugar a um conceito de fluidez e performatividade de género. Para Judith Butler, referencia incontornável deste período, o género não deve ser somente visto como “a inscrição cultural de significado num sexo previamente dado; deve também indicar o aparato mesmo de produção por meio do qual os próprios sexos são estabelecidos”. 

Ao contestar categorias anteriormente inquestionáveis tais como mulher e identidade; binariedade homem-mulher, masculino-feminino, critica o feminismo, sendo o seu trabalho considerado fundamental na teoria queer. 

A evolução do conceito de género nesta terceira vaga tem assim contribuído não só para a evolução na luta pelos direitos das mulheres, mas também para a sua emancipação bem como, e este é um aspeto importante, na luta pelos direitos de minorias LGBTI. 

4. Atualmente 

Existem hoje diversos debates sobre a existência de uma quarta vaga, sobretudo nos grupos ativistas, os quais têm realizado diversos eventos já neste século XXI. Segundo Torres et al (2018), há diversos que têm contribuído para esta certeza, por exemplo, o caso da senadora norte-americana pelo estado do Texas, Wendy Davis obstruiu os trabalhos legislativos por 13 horas para impedir a aprovação de um projeto de lei antiaborto, com o apoio de diversas mulheres, que se reuniram à volta do Capitólio estadual do Texas, ou pela utilização das redes sociais com a hashtag #StandWithWendy. 

A utilização das redes sociais tem dado visibilidade aos mais diversos eventos, iniciativas e causas, por diversas partes do mundo, por exemplo, movimento MeToo, manifestações contra a eleição de Trump nos EUA ou de Bolsonaro, no Brasil, movimentos feministas em países da América Latina, com lutas contra a violência e a violência de género sobre as mulheres. proporcionando uma globalização dos mesmos. 

As principais críticas a estes movimentos são especialmente endereçadas à segmentação destas lutas e por estarem demasiado ligadas e dependentes das redes sociais. 

Regressando aos conceitos… 

Derivado do conceito de género, surgem outros que encontramos na literatura e/ou documentos institucionais e que, mais uma vez, não são neutros nem objetivos. 

Institucionalmente, são os conceitos referidos na CIG que são mais utilizados nos documentos oficiais. No campo da psicologia, essas definições têm já subjacentes a possibilidade do não-binário e que passo a citar: 

Sexo: vulgarmente conhecido por sexo biológico, é reconhecido na altura do nascimento, através da observação dos órgãos genitais do/a bebé (observação do fenótipo) que transmitem uma possibilidade daquele ser se tratar de um macho ou de uma fêmea. Em função da anatomia, ou forma dos genitais (pénis e testículos ou vulva, ou formas mais ambíguas), atribui-se de imediato um género (masculino ou feminino), tornando sexo e género categorias equivalentes. Os indivíduos considerados intersexo são/foram muitas vezes submetidos a intervenções várias, por forma a caberem na dicotomia “masculino ou feminino”. Esta atribuição adquire um carácter legal e social. A componente genotípica não é, habitualmente, aqui considerada, uma vez que apenas em casos excecionais é feito e analisado o cariótipo. 

• Papéis de género: constituem os papéis, comportamentos, atividades e outros atributos que são socialmente construídos numa determinada sociedade e que são entendidos como femininos, masculinos ou andróginos. A Expressão de Género é qualquer forma de expressão através da qual cada um/a manifesta a sua pertença de género, por exemplo, através da sua estética (e.g., vestuário, penteado, barba) ou da linguagem que usa para se referir a si próprio/a (e.g., pronomes e nomes). 

• Identidade de género: refere-se ao autorreconhecimento pessoal e profundo enquanto homem ou mulher, enquanto ambos, ou enquanto trans. É ainda possível que não exista identificação com nenhum género

Orientação sexual: é uma componente da identidade que inclui a atração sexual e emocional de uma pessoa em relação a outra e os comportamentos ou a afiliação social que podem resultar dessa atração. Corresponde a um envolvimento no plano emocional, amoroso e/ou da atração sexual por homens, mulheres ou por ambos os sexos. Pode, por isso, ser classificada em quatro dimensões: heterossexualidade, homossexualidade/lesbianismo, bissexualidade e assexualidade. 

• Transexualidade: corresponde à experiência de não congruência socialmente reconhecida entre a identidade de género e o sexo reconhecido no nascimento (e.g., um homem trans tem uma identidade de género masculina e o sexo reconhecido à nascença foi o feminino; e uma mulher trans tem uma identidade de género feminina e o sexo reconhecido à nascença foi o masculino). As pessoas transexuais podem ser muito diversas entre si, podendo identificar-se de diferentes modos (transexual, trans, transgénero…), e recorrer – ou não – a tratamentos médicos com vista a tornar o corpo e as expressões de género mais congruentes com a sua identidade de género

• Cissexualidade: A primeira consiste na experiência de congruência socialmente reconhecida entre o sexo reconhecido à nascença e a identidade de género

• Cisnormatividade: utilizado para designar a assunção de que todas as pessoas têm uma identidade de género cis. 

• Heterosexismo: define-se como o sistema ideológico que valoriza a heterossexualidade como mais natural do que e/ou superior à homossexualidade e que nega, denigre e estigmatiza qualquer forma não heterossexual de comportamento, identidade, relacionamento ou comunidade. Neste sistema de crenças, a orientação sexual heterossexual é considerada a única psicologicamente adequada e moralmente correta.

• Heteronormatividade: diz respeito à manutenção da heterossexualidade como norma para pensar o comportamento de todos os indivíduos, envolvendo, portanto, a assunção de que todas as pessoas são heterossexuais. Compreende, assim, todo um conjunto de instituições, normas e práticas sociais (incluindo a linguagem), que se organiza em torno de certas diferenças entre homens e mulheres e da sua atração sexual mútua 

• Queer: refere-se a um termo guarda-chuva que pode ser usado por algumas pessoas para descrever a sua orientação sexual, a sua identidade de género, ou as suas expressões de género, quando estas não se encontram alinhadas com as normas sociais dominantes, ou quando se identificam de forma fluída e/ou nãobinária. 

Como podemos ver, as identidades de género tendem a estar em consonância com o sexo biológico da pessoa não sendo, no entanto, estruturas fixas. Segundo Stoller (1993) a identidade de género é “Uma mescla de masculinidade e feminilidade em um indivíduo, significando que tanto a masculinidade e feminilidade são encontradas em todas as pessoas, mas em formas e graus diferentes. Isto não é igual a qualidade de ser homem ou mulher, que tem conotação com a biologia; a identidade de género encerra um comportamento psicologicamente motivado” (Stoller, 1993, p.28). 

Ainda segundo Stoller, a identidade de género inicia com a perceção de pertença a um sexo e não a outro, sendo dada inicialmente através da socialização, primeiro pelos pais e posteriormente pelos amigos, escola, entre outros. Esta inicia-se antes dos 2 anos de idade e vai persistir até à idade adulta. 

Resultará de cinco fatores: a) fator biológico genético (cromossomas XX e XY, acima referenciado); b) designação do sexo do bebé da observação dos órgãos genitais; c) influencia desta designação por parte dos pais e a interpretação destas perceções pelo bebé; d) fenómenos bio-psiquícos relacionados com o anterior e e) desenvolvimento do ego corporal, resultante das qualidades e quantidades de sensações, principalmente nos genitais, que define o corpo e as dimensões psíquicas do sexo da pessoa. Silva (1999) diz, no entanto, que Stoller está a definir identidade sexual e não de género

Louro (1997) diz: Observa-se que os indivíduos podem exercer sua sexualidade de diferentes formas, eles podem “viver os seus desejos e prazeres corporais” de diversas formas. As suas identidades sexuais constituem-se, assim, através das formas como vivem sua sexualidade, com parceiros(as) do mesmo sexo, do sexo oposto, de ambos os sexos ou sem parceiros(as) [orientações sexuais]. Por outro lado, também se identificam, social e historicamente, como masculinos e femininos e assim constroem 12 assuas identidades de género. Torna-se evidente que estas identidades (sexuais e de género) estão profundamente interrelacionadas; a linguagem e as práticas confundemnas muito frequentemente tornando difícil pensá-las distintamente […] O que importa aqui considerar é que – tanto na dinâmica do género como na dinâmica da sexualidade – as identidades são sempre construídas (Louro, 1997, p. 26-27). 

Conclusão 

A sexualidade é diferente em cada fase/etapa da vida e do desenvolvimento do ser humano. Os bebés, crianças, adolescentes, os adultos, os idosos são seres sexuados, expressando interesses e comportamentos que podem mudar em cada fase de acordo com a idade. Por outro lado, olhar para a sexualidade somente de um único ponto de vista ou através de uma única área científica é claramente redutor tendo em conta a complexidade envolvida constituindo-se como uma abordagem artificial. A preponderância de uma ou outra área tem estado relacionada por um lado com aspetos históricos, e por outro lado com a dificuldade de cada um de nós de olhar “para o todo com a consciência que este é muito mais do que a soma das partes”. 

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