Políticas públicas e legislação
Visando a promoção dos direitos humanos e o combate ao estigma, à exclusão social e à discriminação em função da orientação sexual e da identidade de género, têm-se vindo a verificar várias mudanças em Portugal, não só no enquadramento legal com avanços legislativos em diversas áreas, mas também na capacitação da população em geral para uma atitude mais inclusiva através de campanhas de sensibilização. Outras iniciativas dirigidas a públicos mais específicos têm igualmente acontecido, nomeadamente através de ações de sensibilização e de formação de profissionais de áreas fundamentais como a saúde, a segurança social ou as forças de segurança1. E a par de tudo isto, a introdução nos currículos escolares da disciplina Cidadania e Desenvolvimento que, entre outras matérias, aborda temáticas como direitos humanos, igualdade de género, sexualidade e cidadania. De referir que esta disciplina integra a “Estratégia de Educação para a Cidadania na Escola” que tem como finalidade o seguinte: “A educação para a cidadania visa contribuir para a formação de pessoas responsáveis, autónomas, solidárias, que conhecem e exercem os seus direitos e deveres em diálogo e no respeito pelas outras, com espírito democrático, pluralista, crítico e criativo, tendo como referência os valores dos direitos humanos.”2
No sentido de melhor compreendermos a importância das políticas públicas e da legislação nesta área, importa ter bem presente, ainda que de forma muito sintética, o impacto da discriminação na vida das pessoas LGBT. Discriminação que assume diversas “especificidades e formas de atuação particulares, podendo estas ser resumidas na tríade insulto, invisibilidade e isolamento”.3
O insulto é feito com recurso a palavras insultuosas que atingem diretamente a identidade e a intimidade da pessoa. Acontece quer na esfera privada quer na esfera pública e é socialmente aceite como algo normal. Sujeitas a este ambiente de insulto,
as pessoas LGB vêm-se a si próprias como um insulto, como uma vergonha. E isto tem repercussões sérias em vários aspetos da sua vida, incluindo a forma como se vão relacionar em termos afetivos e conjugais.4
A orientação sexual não é um atributo visível para o exterior, a menos que a pessoa LGBT se assuma como tal. E tal assunção é necessária para o desenvolvimento da sua identidade. No entanto, muitas vezes as pessoas LGBT mantêm-se invisíveis por uma questão de defesa relativamente à discriminação e por dificuldade em lidar com o insulto a que são sujeitas. Face ao peso da heteronormatividade, parte-se do princípio de que todas as pessoas são heterossexuais. Ora, as pessoas LGBT para não serem vistas como heterossexuais têm de exteriorizar a sua identidade e a sua orientação sexual.5
Decorrente da invisibilidade, as pessoas LGBT têm dificuldades em estar em contacto e estabelecer relações significativas com outras pessoas LGBT e tendem a isolar-se. O isolamento pode conduzir a situações de bullying. Daí a importância da visibilidade que se dá a esta temática nos últimos anos, bem como da existência de modelos positivos e empoderadores que testemunhem que a orientação sexual não é impeditiva da felicidade e do sucesso.6
A emergência de movimentos sociais e da preocupação legislativa em torno da orientação sexual e da identidade de género acontece na década de sessenta do século XX, em países industrializados com democracias mais avançadas, embora já se ouvissem desde o início deste mesmo século vozes e movimentos reivindicativos mas ainda incipientes. Nesta primeira fase a reivindicação incidia na “descriminalização, aceitação e reconhecimento social das sexualidades minoritárias, e a criação e reconhecimento de identidades coletivas em torno da sexualidade”.7 A crise do HIV/sida, em meados da década de oitenta, veio acelerar todo o processo de reivindicação, tornando-a mais radical, pelo impacto que esta pandemia teve em comunidades LGBT mas também no acentuar da homofobia gerada por esta crise. Na década de noventa a reivindicação direciona-se “no sentido dos direitos civis, nomeadamente relacionados com as formas conjugais, familiares, parentais e reprodutivas”8.
Em Portugal “a preocupação política e legislativa com questões LGBT, bem como uma movimentação social visível e eficaz, só aconteceram a partir da década de 90 do século XX, como efeito secundário da luta contra a sida, protagonizada por sectores da classe médica e pacientes (e não pelo movimento gay, como aconteceu em países centrais); auxiliarmente, com as influências normativas e de valores resultantes da adesão à União Europeia; e em função do processo de desenvolvimento social e económico do país e concomitante mudança de mentalidade, sobretudo nos grandes centros urbanos.”9
Em todo este percurso reivindicativo que, paulatinamente, se foi traduzindo num percurso legislativo, tiveram lugar dois acontecimentos fundamentais no que se refere à orientação sexual: “no plano médico a despatologização e no plano jurídico a descriminalização”.10
De forma muito sucinta, registam-se aqui alguns marcos temporais e históricos em termos legislativos no que se refere à orientação sexual.
1973 – Retirada da homossexualidade como categoria diagnóstica do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM) da Associação Americana de Psiquiatria.
1981 – A Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa adopta a recomendação 924 que condena toda a discriminação legal e social contra a população homossexual.
1982 – Em Portugal, é retirada do Código Penal a punição da homossexualidade entre adultos. Até então a homossexualidade era considerada uma “prática de vícios contra a natureza” e penalizada com medidas de segurança de entre as quais constavam o internamento, a liberdade vigiada e a interdição do exercício da profissão.
‘escala social’)6.
1991 – A Organização Mundial de Saúde retira a homossexualidade da lista das patologias. Convém ter em conta que esta organização integra uma diversidade de países que expressa igualmente uma diversidade de perspectivas sobre esta questão – por exemplo países onde a homossexualidade é passível de pena de morte.
1993 – Na Noruega é aprovada a lei de parcerias registadas, conferindo aos casais do mesmo sexo os mesmos direitos dos casais de sexo diferente, com exceção do direito de adotar.
1994 – O Parlamento Europeu aprova a Resolution on Equal Rights for Homosexuals and Lesbians in the EC (A4-0223/96.
1997 – É assinado o Tratado de Amsterdão, do qual Portugal é signatário, e que recomenda no seu artigo 13º aos Estados-membros a criação de legislação no sentido de abolir toda e qualquer discriminação em razão do sexo, raça ou origem étnica, religião ou crença, idade ou orientação sexual.
1997 – África do Sul é o primeiro país do mundo a proibir explicitamente na sua Constituição a discriminação com base na orientação sexual.
1998 – Os Países Baixos instituem as Parcerias Registadas para casais do mesmo sexo.
1999 – Na Califórnia é adotada uma lei de parcerias domésticas. Em França estabelece-se a PaCS – Pactos Civis de Solidariedade.
2000 – O estado americano do Vermont aprova uma lei de uniões civis para casais do mesmo sexo.
2001 – Em Portugal é aprovada a Lei de Uniões de Facto (Lei nº 7/2001) que reconhece casais de pessoas do mesmo sexo, alargando direitos sociais de cidadania a casais de pessoas do mesmo sexo que vivam em união de facto há mais de dois anos.
2001 – Os Países Baixos tornam-se no primeiro país do mundo a garantir a igualdade de acesso ao casamento civil a casais de pessoas do mesmo sexo.
2003 – Na Bélgica é garantida a igualdade de acesso ao casamento civil e na Suécia é garantida a capacidade de adoção por casais do mesmo sexo.
2003 – O Código do Trabalho em Portugal passa a punir a discriminação laboral em função da orientação sexual (Lei nº 99/2003).
2004 – No âmbito da VI Revisão Constitucional a Assembleia da República aprova por unanimidade a atual redação do artigo 13º (Princípio da igualdade) da Constituição da República Portuguesa, e que aqui se reproduz na íntegra:
- Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
- Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.
2005 – Em Espanha é garantida a igualdade de acesso ao casamento civil, bem como no Canadá. Na Suíça legislou-se sobre Parcerias Domésticas e no Reino Unido sobre Parcerias Civis.
2006 – É garantida a igualdade de acesso ao casamento civil na África do Sul.
2007 – Com a revisão do Código Penal em Portugal (Lei nº 59/2007) a idade do consentimento para atos sexuais passa a ser independente da orientação sexual, e o discurso de ódio homofóbico e a discriminação com base na orientação sexual são classificados como crime de discriminação sexual (artº 240).
2009 – É garantida a igualdade de acesso ao casamento civil na Noruega, na Suécia e nos estados americanos de Connecticut, Vermont, Iowa, Maine e New Hampshire.
2010 – Em Portugal é aprovada a lei do casamento entre pessoas do mesmo sexo (Lei nº 9/2010).
2016 – Com a Lei nº 2/2016 são eliminadas as discriminações no acesso à adoção, apadrinhamento civil e demais relações jurídicas familiares em Portugal. Ainda neste mesmo ano a Lei nº 17/2016 determina a igualdade de tratamento dos casais de pessoas de sexo diferente, dos casais de mulheres e de mulheres solteiras no acesso às técnicas de procriação medicamente assistida (PMA) e proíbe a discriminação seja a nível da taxação das consultas e dos tratamentos seja nos tempos de espera no Serviço Nacional de Saúde (SNS).
2018 – Com a Resolução do Conselho de Ministros n.º 61/2018 é aprovada a Estratégia Nacional para a Igualdade e a Não Discriminação — Portugal + Igual (ENIND) e Plano de ação para o combate à discriminação em razão da orientação sexual, identidade e expressão de género, e características sexuais (PAOIEC).
Em termos de identidade de género, o processo inicia-se mais tarde e em Portugal a primeira legislação que entra em vigor nesta matéria data de 2011 com a Lei nº 7/2011 que cria o procedimento de mudança de sexo e de nome próprio no registo civil.
Em 2006 surge um documento chamado “Os Princípios de Yogyakarta”, documento sobre direitos humanos nas áreas de orientação sexual e identidade de género, publicado em novembro de 2006 em resultado de um encontro internacional de grupos de direitos humanos na cidade de Yogyakarta, na Indonésia. Neste documento a identidade de género é consignada como um dos direitos humanos fundamentais.
A nível europeu têm sido recorrentes as recomendações do Conselho da Europa para que os Estados membros reconheçam e protejam o direito à identidade de género, independentemente da idade ou de quaisquer outras condições.
Em Portugal estas recomendações estão expressas na Lei nº 38/2018 que estabelece o direito e proíbe qualquer discriminação em função do exercício do direito à identidade de género e expressão de género e do direito à proteção das características sexuais.
Embora se tenha feito caminho no campo legislativo e das políticas públicas, combatendo sobretudo a discriminação e garantindo igualdade de oportunidades e meios, a realidade demonstra-nos que a discriminação tendo por base a orientação sexual e a identidade de género está ainda muito presente com todas as consequências devastadoras na vida daqueles que a sofrem direta ou indiretamente. Cabe à educação, formal e não formal, um papel preponderante nesta matéria na preparação das atuais e das futuras gerações. E cabe igualmente à Igreja, porque é de pessoas que se trata, a missão da defesa da dignidade humana, antes de toda e qualquer diferença, através de um discurso e de ações bem objetivos e claros. E, portanto, cabe-nos também a nós – Corpo Nacional de Escutas.
1 cf. Violência doméstica: boas práticas no apoio a vítimas LGBT: guia de boas práticas para profissionais de estruturas de apoio a vítimas. Carla Moleiro, Nuno Pinto, João Manuel de Oliveira e Maria Helena Santos. Lisboa: Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género. 2016
2 Cidadania https://cidadania.dge.mec.pt/
3 Violência doméstica: boas práticas no apoio a vítimas LGBT: guia de boas práticas para profissionais de estruturas de apoio a vítimas. Carla Moleiro, Nuno Pinto, João Manuel de Oliveira e Maria Helena Santos. Lisboa: Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género. 2016
4 cf Guia para intervenientes na ação comunitária e na comunidade escolar sobre orientação sexual e identidade de género. Ana Silva. AMPLOS – Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual e Identidade de Género. 2021
5 idem
6 idem
7 Estudo sobre a discriminação em função da orientação sexual e da identidade de género. Conceição Nogueira e João Manuel de Oliveira (organ.), Miguel Vale de Almeida, Carlos Gonçalves Costa, Liliana Rodrigues e Miguel Pereira. Lisboa: Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género. 2010
8 idem
9 idem
10 idem
Bibliografia
Estudo sobre a discriminação em função da orientação sexual e da identidade de género. Conceição Nogueira e João Manuel de Oliveira (organ.), Miguel Vale de Almeida, Carlos Gonçalves Costa, Liliana Rodrigues e Miguel Pereira. Lisboa: Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género. 2010
Estudo nacional sobre necessidades das pessoas LGBTI e sobre a discriminação em razão da orientação sexual, identidade e expressão de género e características sexuais. Sandra Palma Saleiro (organizadora), Nélson Ramalho, Moisés Santos de Menezes e Jorge Gato (perito convidado). Lisboa: Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género. 2022
Guia para intervenientes na ação comunitária e na comunidade escolar sobre orientação sexual e identidade de género. Ana Silva. AMPLOS – Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual e Identidade de Género. 2021
Violência doméstica: boas práticas no apoio a vítimas LGBT: guia de boas práticas para profissionais de estruturas de apoio a vítimas. Carla Moleiro, Nuno Pinto, João Manuel de Oliveira e Maria Helena Santos. Lisboa: Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género. 2016
Violência(s), (des)Igualdade(s) e Diversidade(s) – guião de promoção de boas práticas. Sofia Neves (coordenação científica), Mafalda Ferreira, Marta Correia e Sofia Neves. Associação Plano i. 2020
Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género – https://www.cig.gov.pt/
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